“Botinada“, filme em DVD de Gastão Moreira, reconstitui a história desse movimento musical surgido no fim dos anos 70, na periferia, que horrorizava a classe média
Foi um longo caminho até a finalização do documentário Botinada – A Origem do Punk no Brasil, que será lançado esta semana em DVD (acompanhado de um CD com repertório de bandas punks brasileiras), pela ST2 Video. Em 2001, o ex-VJ da MTV e apresentador Gastão Moreira, de 40 anos e diretor do documentário, se viu diante da idéia de reconstituir a história do punk rock no Brasil. Até então, pouca coisa havia sido publicada ou registrada sobre o assunto: algumas teses de faculdade, alguns livros, como O Que É Punk, de Antonio Bivar, e Punk – Anarquia Planetária e a Cena Brasileira, de Silvio Essinger, algum registro audiovisual, como o curta Garotos do Subúrbio, de Fernando Meirelles. Enfim, um dos ícones da contracultura no País merecia melhor sorte.
Sem perceber, Clemente, do grupo Inocentes, havia instigado Gastão a essa empreitada. Na época em que apresentava o programa Musikaos, na TV Cultura, ele chamou Clemente para trabalhar junto. ’Ele me contava várias histórias boas, ninguém as conhecia’, conta Gastão. ’A princípio, pensei em escrever a biografia dele, comecei a gravar algo em vídeo. Mas decidi estender, porque a biografia dele se funde com a história do punk no Brasil.’
Em 2002, Gastão lançou-se a campo. E começou a saga em busca dos personagens vivos de um episódio meio difuso dentre os movimentos musicais no Brasil. ’Foi um processo lento e demorado’, descreve. Um ia indicando outro, que ia indicando um. Mas nem sempre a indicação de uma pessoa imprescindível vinha acompanhada de seu paradeiro. ’Me diziam: ’Pô, sobre essa história você poderia falar com fulano.’ Onde eu acho? ’Não sei, talvez num bar não sei onde.’’
Terminada a árdua fase de entrevistas, que durou meses e era necessária para o início da roteirização, ele partiu para a garimpagem de imagens, documentos, reportagens. Vasculhou arquivos de emissoras, jornais e revistas. Dessas andanças, localizou material inédito, desconhecido até entre os próprios remanescentes do início do movimento no País, em fins da década de 70. Inclusive, imagens de um show de punk realizado no Gallery, em 1982! Naquela época, a boate era reduto exclusivíssimo da high society em São Paulo, além de receber celebridades nacionais e internacionais. Idealizado pelo escritor e dramaturgo Antonio Bivar (que se tornou porta-voz do punk brasileiro), o espetáculo botou o Gallery abaixo e horrorizou os ricaços presentes. Esse evento mereceu um capítulo à parte em Botinada.
INCONFORMISMO
Gastão solucionou seu documentário em episódios temáticos e com uma edição ligeira. A história toda segue numa espécie de avanço cronológico. O relato vem de gente que viveu intensamente o começo de tudo – e muitos deles ainda hoje são figuras de resistência do punk -, como o próprio Clemente, Fabio, da banda Olho Seco, Ariel, do Restos de Nada, e sua mulher Tina, e João Gordo.
Eles falam sobre o cenário favorável para que o punk se instaurasse e se desenvolvesse no Brasil, naquele final de anos 70 e início dos 80. Tempos de ditadura militar, de insatisfação com o sistema e com o rock ’chato’ feito na ocasião, tudo isso acrescido da eterna rebeldia adolescente. Detalhe: adolescente da periferia, porque essa mesma faixa etária endinheirada estava ouvindo outro tipo de música: rock progressivo, MPB e discoteca. ’Vamos destruir para depois reconstruir com dignidade’, diz Zorro, do M-19, ressaltando um dos conceitos do punk.
Botinada traça a genealogia do punk rock por aqui. Mostra a fase pré-punk, constituída por grupos como Joelho de Porco. Essas bandas, mais tarde, se incluíram no punk ao se identificar com as diretrizes do movimento. No documentário, elas recebem seus méritos, mas não são creditadas como as pioneiras. ’Quis mostrar que havia bandas que já estavam na estrada. Não eram punks, se aproveitaram do surgimento do movimento. Cólera, Restos de Nada e outras são as primeiras bandas, porque não existiam, se formaram por causa do punk’, explica o diretor.
Gastão levou mais tempo do que gostaria com Botinada. Foram cinco anos ao todo. Coincidentemente, lança seu documentário no ano em que o punk completa 30 anos. Não era o planejado. Queria ver o projeto pronto antes, mas perdeu as contas de quantas vezes precisou reeditá-lo. ’Não usei várias imagens porque não deixaram: Ramones, New York Dolls… Um monte de gente complicou, principalmente os gringos. No Brasil, a maioria liberou.’
(Estado de São Paulo)