Confira o bate-papo de Guilherme Góes com Zeca Ruas, vocalista da banda Gagged:
– Olá, Zeca e banda Gagged! Obrigado pela oportunidade dessa entrevista. Primeiramente, fale um pouco sobre a banda para quem ainda não conhece o som de vocês.
Zeca: Fala galera do Besouros… é um prazer poder participar com vocês por aqui. A Gagged é uma banda de Hardcore que completa, em 2019, 15 anos de estrada. São 15 anos com vários hiatos e mudanças de formação. Com uma trajetória dessas, muitas vezes a Gagged passa a impressão, para parte do público, de ser uma banda nova. Mas essa história longa, com muita gente envolvida, fez a banda receber uma quantidade grande de influências, que transitam entre o punk rock brasileiro dos anos 1980, pelos clássicos do punk gringo, pelo hardcore forjado entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990 em vários lugares dos EUA, mas também por muita coisa do rock n’ roll, do stoner, do som “alternativo”, do ska e do metal. Tudo isso aparece de alguma maneira ao longo da história da banda, seja nos discos, coletâneas e demos, seja em cada show que a banda fez desde 2004.
– Qual o significado do nome Gagged?
Zeca: Gagged significa “amordaçado”. No seu início, a Gagged era um banda do interior paulista que misturava referências da música punk dos anos 1980, mas também da onda original do HC melódico brasileiro, predominantemente cantado em inglês. Essa marca ficou como identidade permanente: desde o começo a reflexão sobre aspectos da vida em sociedade foram cruciais para a banda, assim como as sonoridades inspiradas em um estilo moldado por bandas pioneiras como Nitrominds, Garage Fuzz, Dead Fish, Street Bulldogs, White Frogs, Reffer, Safari Hamburgers, dentre outras que desbravaram o estilo no país.
– No ano passado, vocês lançaram um novo álbum intitulado “Sobre Nós”. Você poderia falar um pouco sobre o processo de gravação?
Zeca: O processo de construção do disco e seu registro foi uma história longa. A gente evoluiu muito no processo. Muitas músicas são antigas, e já estiveram em nossos shows, em versões mais simples, desde 2014. Uma busca rápida dos nossos shows no Youtube e várias delas aparecem.
Mas a produção do disco transformou todas elas e as que a gente compôs entre 2015 e 2016 em algo completamente novo.
Optamos por gravar no estúdio do Ali Zaher Jr. (Sunrise, em Araraquara), no que também seria a primeira experiência dele em gravar um disco completo, com produção, gravação e mixagem. Foi muito enriquecedor. Poder gravar e regravar, testar coisas diferentes, pensar as músicas no detalhe, sem preocupação imediata com o tempo em estúdio, foi fundamental.
O Ali acompanhou cada detalhe da produção e certamente teve uma importância crucial no resultado. Além de toda a contribuição individual como músico, ajudou todo mundo a tirar o máximo de si, o que nos fez chegar à um novo patamar ao final do processo.
Uma das coisas mais bacanas do processo de gravação foi quando tivemos a notícia de que o Greg Hetson tinha topado gravar um solo na música Caleidoscópio. Quando ele mandou a track a gente ria de alegria… é muito foda ter a assinatura dele no nosso trampo.
A masterização ficou por conta do Nick Townsend, que deu o talento final no trabalho. O Nick, além de engenheiro de som, é baterista (o trampo mais recente dele são os EPs da banda Fireburn), masterizou ou remasterizou discos de bandas como Alice in Chains, Pearl Jam, Thrice, Paramore, Garbage e o próprio Fireburn, dentre muitas outras.
Tudo isso aconteceu entre o segundo semestre de 2015 e agosto de 2018, quando a masterização ficou pronta. O tempo permitiu que as transformações positivas tivessem seu espaço, mas também acabou nos afastando do palco. Apesar de termos feito uma tour de pré-lançamento em 2017, a formação que efetivamente compôs e participou de todas as etapas do processo, com Zeca, Murilo, Ali, Lique e Eric foi desfeita no início de 2018, com a saída do Ali e do Eric. A banda que foi pra estrada depois, pra lançar o disco, já tinha o Rodrigo Zanin na guitarra e o Junior Maggi no baixo, que seguiram com a pegada forte.
– Qual o principal motivo para a mudança de composições em inglês para o português?
Zeca: A mudança ocorreu em 2013, quando a banda trocou de vocalista. Na época, logo depois da saída do Carlinhos, que gravou as vozes no primeiro disco (Silent), o Ali e o Murilo procuraram o Zeca para assumir essa função e já propuseram a mudança. E o Zeca só sabe compor em português mesmo (hehe)
Na real a banda sentiu, depois do Silent, a necessidade de ampliar o diálogo com o público. Já que a pretensão era discutir temas com mais profundidade, nada mais adequado do que usar nossa língua nativa. Mas a gente segue curtindo e respeitando trabalhos de amigos em inglês e não descartamos a possibilidade de fazer algo nessa pegada no futuro.
– Ocorreu alguma influência especial durante a gravação desse álbum? Quais temas vocês abordaram neste trabalho?
Zeca: Como o processo de composição e arranjo foi bastante longo e com muitas remodelações, dá para sacar muitas influências em cada som. A gente usou muita coisa que gostava. O mais legal é que cada pessoa que ouve com cuidado, e depois vem trocar ideia, comenta algo diferente. Escutar-se várias vezes com atenção, além das óbvias referências de Bad Religion, Descendents, Propagandhi, Pennywise, NOFX, Satanic Surfers, Lag Wagon, Dag Nasty e tantas outras bandas centrais do HC melódico… tem arranjos inspirados em Black Flag, Slayer, RDP, Iron Maiden, Fugazi, Queen, Sublime ou mesmo umas pitadinhas de New Wave em alguns lugares…
Já os temas das letras seguem três grandes linhas. A lógica de funcionamento da nossa sociedade aparece em “A Máquina”. Ela é a primeira do disco justamente por apresentar logo de cara essa visão sistêmica. Grande parte das demais letras discute como as pessoas, o indivíduo nessa sociedade, é afetado por essa dinâmica, especialmente em nosso tempo histórico. Disso derivam as metáforas sobre escolha, angustia no convívio social, das exigências de eficiência e produtividade como métricas de existência, da frustração das projeções em relacionamentos pessoais, da necessidade de acumular dinheiro pra ser vencedor. A última parte, que inclui Cidade Sem Lugar, 31 de Março, Fim da Linha e Caleidoscópio fala do Brasil e do nosso momento político. Polarização, autoritarismo, exclusão, conservadorismo… tá tudo lá, metaforicamente. A grandes referências para as letras, além da realidade ao nosso redor, são nossas reflexões a partir de Marx, Sartre, Nietzsche, Freud, Florestan Fernandes, Dostoievsky… quem ler e escutar com cuidado vai perceber. Sem muita modéstia, é um disco pra ser digerido com calma e atenção. Se ouvir rápido, não vai notar nem metade do que gastamos tanto tempo pra fazer.
– Qual mensagem vocês tentaram transmitir com a arte da capa?
Zeca: A capa faz parte de um conjunto de artes que o Wildner Lima, ilustrador feríssima de Rio Claro, fez para o nosso trabalho. Tem bastantes detalhes e mensagens escondidas… hehe. A mensagem geral é a mesma da música a Máquina. Os personagens principais fazem as negociações. As pessoas se confundem, minúsculas e sem rostos, às engrenagens, muito maiores do que elas e que constituem as estruturam onde vivem. As referências simbólicas ficam todas ali. A cidade mecanizada e alguns edifícios que remetem à cidade de São Paulo conversam, por exemplo, com o primeiro single do disco, “Cidade sem Lugar”. Mas também tem outras coisas por lá. O cifrão que aprece em um lugar que normalmente seria ocupado por um símbolo político militar expressa nossa visão sobre a verdadeira fonte do poder e de nossa subserviência. É a força do dinheiro e um contrato privado, ilustrado também pelo banquete e pelo aperto de mãos, que regem a dinâmica toda. Tem mais um elemento simbólico interessante… mas ai é pra quem tiver interesse em pesquisar, e que talvez acabe encontrando… tem um brasão em destaque que remete simultaneamente ao poder histórico da finança e, simultaneamente, a um grupo fascista de um país europeu. Achamos que casava como uma luva na arte toda. Tem outros pequenos detalhes… mas essa é a simbologia geral. A gente vai lançar outras artes que conversam com outras letras ainda…
– Logo após o lançamento deste álbum, rolou uma mini turnê de divulgação com a banda Plastic fire. Como foi a experiência em tocar e dividir os palcos com os cariocas?
Zeca: O Plastic Fire é uma banda que passa uma energia incrível por onde passa. Distribuem carinho e o público retribui com intensidade impressionante. A gente teve uma sintonia muito forte com eles. Do estilo de som, da filosofia permeando letras em português, das histórias de estrada, das lutas pra reorganizar formação… nos tornamos irmãos e vamos repetir a dobradinha logo mais. Foram os primeiros 3 shows da nossa tour lançamento, que depois passou por várias outras cidades. Rodamos mais de 5 mil quilômetros em 3 meses.
A gente adiquiriu algum “know how” organizando a logística e a produção deste tipo de minitour, especialmente no interior paulista. Fizemos isso com a galera do Blackjaw, do Statues on Fire, do Letall, do Rawfire, do Against the Hero… e estamos com planos pra organizar algumas bacanas em 2019. Ainda em março a gente deve divulgar alguma coisa nessa mesma pegada para o primeiro semestre.
– O Gagged é uma banda de São Carlos, uma cidade um pouco fora do circuito no cenário hardcore. Na opinião de vocês, quais as principais dificuldades que as bandas locais encontram para seguir em atividade?
Zeca: O público das grandes capitais é, obviamente, muito superior e permite que suas bandas façam shows regulares, em lugares diferentes, as vezes para muitos públicos distintos… sem sair da própria cidade. Essa é a diferença básica em relação ao interior. Em geral, nas cidades menores, existe um ou dois lugares legais pra fazer música autoral e o público é sempre mais restrito. E por mais legal que sejam estas casas e o público, se você toca sempre, fica estranho.
Obviamente, tocar bastante em grandes capitais é meta para qualquer banda. Nosso maior público hoje é em São Paulo, mesmo tendo uma média de shows relativamente pequena na capital. Pra qualquer banda do interior, mais difícil do que marcar os shows é arcar muitas vezes com os custos, já que boa parte do circuito é financiado pela divisão de pequenas bilheterias.
Outro desafio que a gente vem tentando articular, com mais sucessos que fracassos, são os roteiros entre cidades do interior. São Paulo é um dos poucos estados com tantas cidades capazes de produzir eventos. Mesmo que modestos, facilitam a logística e permitem a organização de minitours únicas quando comparadas com outros estados. Em geral, em outros estados raramente existem mais de 4 ou 5 cidades com produção, casa e públicos organizados.
E São Carlos é uma cidade peculiar. Apesar de irregularidades ao longo de alguns períodos, sempre foi importante pro hardcore e rock independente. Apesar do porte modesto, já recebeu shows de bandas gringas como Pulley, Man or Astro-man?, Nebula, … And You Will Know us by Trail of the Dead, Flatcat, Baby Lou, Mute, Bambix, Alarm, Los Viejos e várias outras. Das bandas nacionais, é difícil encontrar alguma importante do HC que não tenha passado por São Carlos. As maiores vieram muitas vezes. O festival Rock na Estação é uma referência importante e a produção independente sempre foi ativa por aqui. A gente mesmo produziu muitos ao longo dos últimos 15 anos e em 2019 vamos fazer bastante coisa nova.
– Vocês poderiam recomendar alguma banda interessante da cidade ou da região?
Zeca: São muitas… e certamente a gente vai deixar de fora muita gente boa.
Pra errar menos, melhor ficar só no eixo mais próximo, do rock de São Carlos, Araraquara e Rio Claro… Das bandas que lançaram coisas novas recentemente ou que estão mais ativas, tem a Drive to Glory, Tessalônica e Corréra de Araraquara, o incrível Garrafa Vazia de Rio Claro e, na pegada mais extrema, o Dysnomia de São Carlos, que é imperdível. Mas também tem várias outras bandas importantíssimas, seja por seu pioneirismo ou influência musical, seja pela importância na produção cultural… Bifidus Ativus e Dezakato, no HC, Dead Rocks na surf music, Noise e Hippies not Dead no som extremo são exemplos incontornáveis de bandas e músicos que fizeram a coisa acontecer por aqui. Mas tem uma galera muito foda que esteve em diferentes momentos produzindo música, festivais, ativismo cultural/político e que certamente foi crucial pra Gagged poder existir. Que nos perdoem os nomes que ficaram de fora.
– Quais os planos da Gagged para o ano de 2019?
Zeca: Muitos. A gente quer continuar apresentando o disco. Apesar de termos recebido um feedback muito legal de vários lugares e pessoas, a gente sabe que muita gente ainda não ouviu nosso último trabalho.
Pra divulgar mais, mais shows, mais cidades e provavelmente um clipe novo ainda no primeiro semestre. A gente deve lançar um site, pra ter uma ferramenta nova que apresente nosso trabalho com uma cara mais nossa, sem as amarras das redes sociais tradicionais… e já começamos os primeiros passos de composição para um disco novo. Como mencionamos antes, a formação da banda mudou e a gente quer botar essa cara nova a tapa o quanto antes.
Mas a prioridade é levar Sobre Nós pro lugar que ele merece. Pra isso, fazer o que a gente mais gosta. Estrada e show. Chama que nós vamos!!
– Novamente, obrigado pela oportunidade. Digam algo para nossos leitores.
Zeca: A gente é que agradece de novo. A música independente vive deste suporte mútuo e a gente realmente gosta do trampo da Besouros… é um orgulho estar por aqui. Aproveitamos também pra agradecer os elogios que a resenha do Besouros fez do nosso show de abertura no evento com o Strung Out e o Statues on Fire em São Paulo em 2017.
Para os leitores, queríamos fazer um pedido. Quem chegou até aqui… é por que se interessou pelo nosso trabalho, ideias e projetos. Como a gente disse, Sobre Nós foi uma construção muito longa e detalhista. Se tiverem tempo, escutem com calma, algumas vezes. E depois vem conversar com a gente, mesmo que seja pra fazer críticas. Cada música tem uma história pra contar e a gente vai adorar dividir isso com mais gente.
Nos vemos logo mais!! Abraços.